Poesia

A Poesia alcança as fadas, encanta a chuva na madrugada, acompanha os ébrios nos dormentes e se mistura à solidão nas calçadas.

25 de março de 2015

Sonhos perdidos

                                                                       Imagem da Internet



 Imponente, magistral ele se encontrava em frente uma das janelas.  Neste exato momento as cortinas pareciam dançar ao seu redor.

  Ao passar pela imensa sala da biblioteca eu o via.  Sem dúvidas ele exercia certo fascínio sobre mim. Quantas vezes entrei em busca de algum livro como desculpa para observá-lo de perto, encantada e curiosa, noutras, nos intervalos das aulas, ficava ali quieta apoiada ao portal da entrada com minha saia plissada e azul, dobrada na cintura, longe da inspetora, sim porque na entrada do colégio o comprimento das  saias  era fiscalizado atentamente por ela. A saia teria que ficar na altura da dobra dos joelhos, mas sempre dávamos um jeito de deixá-la mais curta, elegante e na moda. Bastava  o uso dos sapatos de marca muito conhecida na época,  luzindo de tanta graxa, item obrigatório no uniforme até mesmo para nós as meninas.  Eu o olhava longamente, impulsionada a dar alguns passos e ficar frente a frente com ele.   Seria maravilhoso, eu sabia que sim. Melhor ainda se pudesse tocar.   – Mas, e se chegasse alguém, o que aconteceria?  Que estranha paixão!  Os dias se passavam sem que eu tivesse coragem. 

Naquela tarde acontecia uma reunião entre diretores, professores e alunos, por conta da instalação das mesas de pingue-pongue que foram colocadas nas áreas de recreação do colégio. Essa iniciativa estava causando grandes problemas, visto que alguns alunos dispersavam-se das aulas, na verdade cabulavam aulas para não interromper o jogo, além das confusões em torno das partidas. Alguma coisa teria que mudar, muitos foram severamente punidos em detrimento das próprias notas mensais.   A tentativa da retirada das mesas causou grande polêmica.  Teriam que estabelecer novas regras para a permanência delas.

Num momento oportuno eu escapei como um peixe  do anzol.  Rapidamente alcancei o andar de cima.
Parei como o de sempre, na porta.  Ele continuava lá, Belo e altivo. Não podia crer que estivéssemos sós. Mais alguns passos e estava diante dele. Sentei-me à sua frente, mas meus pés ficaram pendurados. O banquinho estofado, de veludo era um pouco alto.  Estaria em mais vantagem se ficasse com os pés bem apoiados no piso, desci rapidamente.  Ele parecia sorrir para mim.
Lindos Dentes!

- Imaginei a cena: Agora eu trazia um Solitário no dedo médio sobre luvas, um vestido branco com bastante roda, ombreiras bem altas e um perfeito caimento sobre as minhas  meias delicadas e  brancas, sapatinho de tecido com pedrinhas, tudo igualzinho ao livro que li.

 Por falar em livros a minha única plateia era digna daquele momento e eu o dividi com Monteiro Lobato, Disney, Cecília Meireles, Machado de Assis, Cervantes e tantos mais, alguns grandes conhecidos e outros ainda não.
  
Levantei minhas mãos, como se aguardasse o Regente, abaixando-as em seguida no teclado. Suaves momentos ao deslizar meus pequenos dedos sobre ele, repleta de  encanto e felicidade.    Cada vez mais impulsionava minhas mãos que iam e voltavam, hora levemente, hora pesadas, buscando extrair ao máximo as notas que pareciam loucas  e que faziam soar muito alto  os  Mi- Dó- Ré- Lá- Fá-Sol –Dó,  Mi- Ré- Fá –Sol –Lá- Si- Mi, Dó- Mi- Ré- Si- Não sei  que notas eram, que canção sem ritmo, um amontoado de Dom, Dom , Dom , sei que me divertia muito  e mais uma vez,  Dó- Mi- Fá Ré  e  Lá ...Estavam eles, todos eles,  espremidos na porta:  A Diretora, o Vice, os Professores, Merendeiras, a Fiscal das saias. Pareciam   nervosos.  De repente parei. Não sabia se começava a sorrir ou chorar ou quem sabe saltasse pela janela e sumisse para que jamais fosse encontrada. O som frenético do piano deveria ter chegado rapidamente aos corredores, escadas e ao pátio.

Que culpa eu teria?  O piano magnífico foi colocado ali para as aulas de música desde o início do ano. Era uma promessa. Foi-nos apresentado com pompas, mas na verdade jamais tivemos acesso a ele e apenas nos traziam flautas das quais mesmo que fossem mágicas eu  não conseguiria tirar delas uma notinha se quer. Eu não me interessava pelas aulas de flauta eu sonhava com as aulas de piano.

 Uma voz estridente e nervosa estourou bem perto dos meus ouvidos que já se encontravam muito atordoados.

- O Show acabou mocinha!- Logo você a mais tímida e educada das nossas alunas... O elogio de nada adiantou, me aplicaram quatro dias de suspensão.

 Acabou o Show e também  o sonho.


Lourdinha Vilela.

Do You Tub
Valentina Lisitsa.

                                                      


  

10 comentários:

  1. È Lourdinha... quanto pode um sonho... transpor a severidade das regras para realizar um desejo tão maravilhoso, simples e natural para uma criança...o mundo das regras que infelizmente corroem a liberdade criativa fazem da escola um preparo para as frustrações da vida.
    Um abraço

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  2. Que lindo te ler e que pena que não deixaram que o show continuasse.Estava adorando! Valeu! bjs, chica

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  3. Oi Lourdinha,voltei ao meu tempo de Ginásio.
    Adorei ler.
    Bjs-Carmen Lúcia.

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  4. Lourdinha, você me fez lembrar do regime militar rs, do colégio de freiras onde estudei...
    Voltei ao passado... o uniforme, as meias até os joelhos, a gravata...rs.
    Adorei.
    Beijo!

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  5. Como me encontrei neste texto, eu, que também andei num colégio. Só que não tínhamos acesso à biblioteca, que nos era proibida...
    Um beijo.

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  6. Olá Lourdinha, que belo texto!
    Só foi pena que o show tivesse terminado desse modo!
    Assim são muitas vezes cortados os nossos sonhos, quando já estão em embrião!
    Um grande beijinho.
    Ailime

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  7. Lindo o vídeo! O movimento dos dedos sobre as teclas, o som da música que se faz ouvir... tudo mágico.
    Você me levou de volta ao colégio de freiras, às saias dobradas na cintura (rss), às rígidas regras. Ficou muito bela sua descrição dos acontecimentos. Senti dó ao ler que o sonho também findou, naquele momento. Bjs.

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  8. No quesito "altura da saia", lembrou meu ginásio, que foi em escola pública na época que existia disciplina.
    Seu conto é esplêndido, nos detalhes, nas regras de um ginásio de meninas adolescentes...No início pensei que a "paixão" fosse outra...aos poucos, ela se revela...Frustração de um sonho: imperdoável.
    Parabéns, Lourdinha, lindo texto, complementado com uma exímia pianista plenamente realizada...
    Beijo!

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  9. Olá Lourdinha,

    Esta música é emocionante, linda, e foi tocada com a alma pela Valentina.
    Seu texto/crônica é altamente envolvente. Quando se ama um instrumento, nenhum outro é capaz de substituí-lo. Triste final para um sonho.
    Creio que essa atitude de subir as saias depois de passar pela fiscalização à entrada dos colégios sempre foi hábito de todas as garotas.Também na minha época era assim. Eu dobrava a minha na cintura após sair de casa e depois da saída do Colégio-rs.

    Adorei a leitura Lourdinha. Lindo o texto!

    Desde já, desejo-lhe uma linda e abençoada Páscoa.

    Beijão.

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  10. Lindo o texto, nem preciso dizer que me fez voltar ao meu lindo passado, rsrs, pois é, eu me casei com o lindo menino do meu tempo de colégio, ainda estou casada e juntos contamos nossa linda estória aos nossos lindos netos adolescentes!
    Amei ler e ouvir o belo vídeo!
    Abraços linda amiga!

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