Do Diário de Susan
Fazia um frio
intenso naquela tarde.
Ana entrou no vestiário apressada. Olhou-se no
espelho jogou um pouco de água no rosto. Tinha uma expressão alegre e curiosa. Escovava
os cabelos, enquanto pensava surpresa na atitude do pai em ir buscá-la no
colégio. Era primeira vez que isto acontecia.
-Veste filha –
disse estas palavras como um cumprimento.
O pai trazia nas mãos, seu casaquinho vermelho
de lã com gola branca. Ana sabia ser aquela,
uma ordem de sua mãe, sempre preocupada em protegê-la imaginando o óbvio.
Não era muito dado a beijinhos e demonstrações
carinhosas etc., mas era um bom pai dentro do possível, embora, sem corresponder
totalmente às necessidades afetivas dos filhos. Ana já estava acostumada. A mãe cobria estas falhas em dobro, e a família
seguia bem.
- Vamos assistir a
um filme? – perguntou.
Ana sentiu uma felicidade imensa e estranha, como quando
na infância, imaginava a chegada do Papai Noel.
-Qual filme pai? –
perguntou, enquanto puxava o fecho do agasalho.
-Surpresa!- Não contem não - Disse ele, dirigindo-se aos
outros dois irmãos menores que também se encontravam ali.
Seu pai, um
taxista, se encontrava ainda uniformizado com uma camisa azul clara e uma calça
social preta, bem surrados da noite e parte do dia de trabalho. Trazia uma alegria
no semblante, algo que a menina nunca percebera antes, pois ele estava sempre
murmurando e se queixando, hora pelo pouco dinheiro da praça, hora pelas dores que
sentia na coluna.
Os dias se
sucediam dessa forma em sua vida.
Quase não tinha tempo para os filhos. Mesmo assim, à noitinha trazia uns salgados
deliciosos e sempre quentinhos de uma lanchonete muito conhecida na rodoviária local.
Logo na entrada do portão de casa, atirava um salgado ao cãozinho Mandrake que o aguardava
fazendo festa. O nome do animalzinho foi copiado do personagem de um gibi que Ana
gostava de ler.
Ana também
aguardava ansiosa, pelo pai, como se aquele gesto, ou seja, a entrega dos
salgados que fazia diretamente em suas mãos, e também em especial, o sorriso
que se abria em seu rosto, simbolizassem as únicas manifestações de afeto entre
pai e filha. Era realmente um elo. O sorriso
substituía abraços e palavras que raramente aconteciam e significava muito, como
um sinal de amor. Por conta disto, Ana
não desistia de esperar por estes momentos, mesmo que por várias vezes se
encontrasse sonolenta e mal saboreasse um salgado sequer. Tudo era um grande pretexto para se aproximar
um pouco mais do pai.
No cinema,
compraram pipocas, balas e chicletes. Havia um grande burburinho de vozes.
Outras meninas pareciam desfilar enquanto buscavam lugares nas cadeiras entre
os corredores. Ana sentia-se acanhada por não estar vestida adequadamente.
“Se o meu Fusca falasse”, na versão brasileira, filme
americano de Walt Disney, era o grande sucesso do momento. Agora ela conseguia
entender o interesse do pai na escolha do filme: o seu táxi era também um fusquinha. Durante o filme, muitas risadas entre
eles. A liberdade de poder rir ao lado
do pai, de ser ela mesma, sem medo, estabelecia confiança, amizade, e tantos
outros sentimentos que brotavam naquela hora, em que ele, como se voltasse a ser
criança, retorcia-se de tanto rir, sem se parecer em nada com o pai severo, fechado
e às vezes repressor.
Ao saírem do
cinema, era como se o filme continuasse dentro do carro enquanto comentavam as
melhores e mais engraçadas cenas, até chegarem a casa.
Passaram-se alguns dias.
Ana, não entendia a personalidade do pai apenas imaginava
que algo poderia estar acontecendo, ele andava mais calado ainda, ela porém
preferia conservar a doçura do seu encontro com ele e os irmãos no cinema, e
isso lhe trazia muita alegria. Claro que sonhava com outros passeios como
aquele. Neste dia entregou ao pai um
recorte de revista com seus dados e uma carta para serem colocados no Correio.
Queria fazer um curso técnico de pintura a distancia. Tinha muita tendência às
artes plásticas e apesar da sua pouca condição financeira sabia que não iria
desistir. Aquele seria só um pequeno começo até cursar uma faculdade. O pai,
agora demonstrava uma tristeza profunda e um silêncio gritante, como se o mundo
lhe estivesse pesando sobre os ombros. Colocou a carta no bolso direito da
camisa e saiu.
Jamais retornou.
Julho, 1970.
Notou um barulho
de carro em frente a casa. Chegou até a
janela, puxou um pouco a cortina, e viu um carro de polícia estacionando.
Voltou e abaixou o volume do rádio, sentindo no coração as batidas de um surdo.
Logo os policiais se aproximaram com um papel na mão. Ana reconheceu o recorte
de revista e a carta que entregara ao pai. O Policial se identificou e pediu a
presença da mãe de ana ou de um adulto. Ana quase puxou os papéis das mãos do
policial, imaginando muitas coisas. A
música no rádio agora era um fundo triste a embalar sua aflição.
–Pode falar
Senhor, eu sei, alguma coisa aconteceu ao meu pai. Falava movendo-se de um lado
para o outro. O Policial pediu novamente a presença de um adulto.
- Eu estou sozinha, mas tenho uma tia que mora
aqui perto.
- podemos ir até lá. Disse Ana. E em seguida entrou no carro, na companhia dos policiais, sem hesitar.
- podemos ir até lá. Disse Ana. E em seguida entrou no carro, na companhia dos policiais, sem hesitar.
Na casa da tia, Ana presenciou todo o discurso. Viu muitas
lágrimas em seus olhos. Soube então do
gosto amargo da tristeza, do vazio e do fim.
Em poucos dias o carro foi encontrado.
O fusca bege e os
sinais...
Foi colocado na garagem e coberto por uma lona imensa.
A ausência do pai tornou mais viva as suas recordações. Imediatamente, em seu pensamento pode rever o filme, os risos, e a alegria.
A alegria...
O frio, o frio...
Uma interrogação a ser desvendada pela polícia era agora
o único sentimento que a envolvia, e, a todos os seus familiares.
Ana chorava.
Ana chorava.
- Ah! Meu pai.Se o seu Fusca falasse...
Lourdinha Vilela
http://www.youtube.com/watch?v=Ng1aJtWcwlk
Assim são as lembranças de vida...belas e tristes ao mesmo tempo.
ResponderExcluirum abraço
Verdade minha querida,
ExcluirUm grande abraço e obrigada,pela presença. bjs.
Olá, Lourdinha!
ResponderExcluirEstou sem palavras.
Muito lindo seu conto.
Me emocionei.
Parabéns, muito bem escrito e conseguiste me prender na história.
Beijos e o meu carinho pra ti.
Obrigada Lis, tenho este conto escrito há muito tempo atrás,só agora resolvi postar. Um grande abraço, obrigada pelo carinho.
ExcluirEmocionante te ler.Lindo! Gostei muito.Nos levaste junto...beijos,chica
ResponderExcluirObrigada Chica. e também por sua constante presença.
Excluir
ResponderExcluirOlá Lourdinha,
Um conto emocionante e envolvente.
A narrativa está ótima.
Adorei ler.
Beijo.
"Tudo era um grande pretexto para se aproximar um pouco mais do pai."
ResponderExcluirSorri e chorei, porque é exatamente assim em minha casa. O texto bateu lá no fundo do meu peito e voltou como uma lembrança. Eu não tenho palavras para dizer o quanto este texto me tocou, realmente lindo e nostalgico, e muito, mas muito emocionante.
Grande beijo
Oi Andressa, a minha vida também era assim, exatamente assim. bjs.Obrigada.Bom que vc. gostou.
ExcluirObrigada Márcia,
ResponderExcluirFico feliz que você tenha gostado.
Apareça sempre.
bjs.
Oi Lu,
ResponderExcluirLindo texto! Vivi esse tempo. Vivi esse pretexto. E o meu pai é a minha referência.
Bom final de semana!
Um conto que mostra sentimentos alimentados por muitas crianças. Ficou lindo! Bjs.
ResponderExcluirObrigada, Marilene, um grande abraço,
ExcluirPoxa Lourdinha, que emocionante, eu nunca assisti esse filme, mas me lembrei de um episódio real na vida da minha mãe, qdo ela fez 15 anos meu avô, se despediu dela dizendo que ia até a mercearia, ele nunca mais voltou, a família acabou sabendo onde ele estava dois anos depois, e uma vez constatado que ele havia ido embora por que quis, minha mãe não quis mais contato com ele, mais de 20 anos depois ela soube que ele havia falecido , morro de dó dessas histórias! Bjoooosss
ResponderExcluirOi kellen , obrigada,
ExcluirCom certeza esta história, também muito triste, daria um outro conto.
Obrigada Kellen, pelo carinho de sempre se fazer presente, e participante.bjs.
Oi
ResponderExcluirQuerida
Viajei no seu lindo texto
Trouxe lembranças boas e tmb não...............
Vivi um pouco disso
Saudades do meu velho,com êle dei minhas primeiras pinceladas
Que amo fazer até hj....
Obrigado pela carinhosa vst,adorei
Que seu dia seja radiante!!!
Bjossss
Oi Lucia, as saudades são sempre assim, as vezes boas ou ruins, mas sempre haverá uma saudade.
Excluirbjs. e muito obrigada.
Lourdinha!
ResponderExcluirComecei a ler e pensei: Que encanto de conto! Vc narra com tanta perfeição que as cenas se mostraram como diante dos olhos, passíveis de serem tocadas. E quantas lembranças me trouxe... Se o meu fusca falasse... Diverti-me contando o filme para o meu pai, que na época também tinha um fusca (que ainda existe e está com a minha mãe como uma relíquia da família)...
Porém, do meio para o final, a surpresa. Não imaginei que vc nos levaria da doçura direto a fortes emoções! Um bom conto se faz assim, a cada novo capítulo o inesperado que mexe com nossas emoções... ADOREI!!
Mil vezes parabéns!!
Bjobjobjo!!!
Obrigada Sueli, tenho este conto escrito há muito, muito tempo mesmo. Que bom que você gostou, sua opinião é muito importante para mim, creia, pois também admiro muito sua capacidade ao escrever também as suas emoções.
ResponderExcluirVolte sempre, fico sempre feliz e agradecida.
Um grande abraço.
Emocionada com o seu conto... Quantas lembranças, emoções...
ResponderExcluirParabéns, Lourdinha!
Continue nos presenteando com sua poesia e seus contos!
Abraços com carinho :)
Muto interessante, de um filme delicioso e inesquecível, a criação de um excelente conto.
ResponderExcluirUm beijo, Lu.
Assim não vale, Lourdinha, você quase me fez chorar. Muito bom, viu? Beijos e muita paz!
ResponderExcluirEmocionante.Gostei muito.
ResponderExcluirbjs
cvb