Poesia

A Poesia alcança as fadas, encanta a chuva na madrugada, acompanha os ébrios nos dormentes e se mistura à solidão nas calçadas.

26 de fevereiro de 2012

ABISMO




                                                                                  I                                                                                

- Apenas estou olhando para as sandálias! Paulo respondeu ao olhar severo de sua mulher. - Pensei em como ficariam lindas em seus pés.   Disfarçadamente retirou o olhar da mesa ao lado onde uma jovem se exibia num vestido curto. Parecia fascinado.  Recuou e aguardou o sermão. Porém só o silêncio se fez presente. Estranhou a atitude de Dora.
                                                                                    
Qual seria a desculpa da próxima investida? Dora tinha certeza de que haveria outra. Paulo sempre se comportava assim, não conseguia amá-la somente, ou quem sabe nunca a tivesse amado. Em nome de que ou de quem teria suportado tudo, Toda a humilhação de16 anos de um casamento unilateral. Ele ainda era o mesmo menino apesar de terem uma filha de 15 anos. Continuava leviano e inconseqüente.
Aquele era um dia especial para Dora. -O dia do seu aniversário. Claro que não esperava receber de presente um novo marido, reciclado e embrulhado em um papel dourado, ao menos poderia fingir um pouco, respeitar os amigos que os acompanhavam naquele jantar. Todos eles é claro conheciam sua fama de Dom Juan. Eram amigos de longa data, a contar dos tempos em que o casal se conheceu. Mesmo assim, Dora percebia um murmurar de indignação e pena entre eles. Ser classificada como a mal amada era o que mais doía e a incomodava nessas horas. Com certeza soubessem mais do que ela sobre as traições de seu marido, dos seus romances e encontros, orquestrados talvez, e, à luz de velas, pois era assim que ela imaginava que tudo acontecesse ao ser enganada ou seja,  da mesma forma  em que sempre sonhava em se encontrar ao seu lado, em lugares lindos, finos, em salões imensos para  dançarem envolvidos por um grande amor.  E agora ali estavam eles, Dora e Paulo nesse lugar maravilhoso, depois de toda a sua insistência para que ao menos uma vez   a  atendesse realizando os seu desejo.

                                                       II                                                                                      

 Dora conhecia bem a localização do hotel-restaurante, apesar de não o frequentar. Soube de uma grande reforma no seu interior.   Ficou surpresa ao se deparar com o luxo e a decoração moderna dos ambientes, em contraste com a arquitetura que conservava ainda traços de um pequeno castelo medieval que tanto impressionava seus visitantes e clientes. Ficava um pouco afastado da cidade. Há algum tempo costumava fazer trilhas com seus amigos de faculdade por aquelas redondezas. Um lugar bastante acidentado, cercado por montanhas.  Atualmente o serviço de hotelaria se encontrava desativado e os proprietários ocupavam parte de suas dependências mantendo apenas o funcionamento do restaurante- dançante.
O jantar acontecia sem muita animação e é claro, Dora já um pouco decepcionada se encontrava como sempre muito triste. Nada de Príncipe e Cinderela, era apenas uma doce mulher tentando provar o gosto do encantamento sonhado. Seu olhar procurava pontos inferiores aos dos outros olhares, tentando esquivar-se, mal conversava, ouvia apenas o marido no seu discurso egocêntrico do: eu sou, eu fui eu serei, eu estive lá, além de suas insistentes olhadas para a mesa lateral que mais pareciam faróis cruzando-se em mão dupla, já que a  referida garota  correspondia à todos descaradamente. Quem sabe já não haviam se cruzado antes por algum lugar ou até mesmo fossem mais próximos ainda. Tudo passava por sua cabeça e aguçava o seu sexto sentido.
Após o jantar, a sobremesa: Um lindo bolo branco decorado, com um glacê rendado, de um verdinho bem claro e suave, presente de sua amiga e madrinha de casamento. Nice era como uma irmã, sempre ao seu lado acompanhando, dividindo e ouvindo seus infinitos lamentos. O Garçom entrou com um buquê de rosas vermelhas e o entregou à Dora. A princípio se emocionou pensando ser uma delicadeza de Paulo, mas logo soube que se tratava de uma cortesia da casa.
Cumprimentos, abraços. Paulo, aproveitando o momento em que todos se distraiam saiu apressadamente distanciando-se do grupo.
Uma onda de ternura momentânea tomou conta de Dora enquanto abria as lembrançinhas recebidas de seus convidados. Perfumes jóias, uma caixinha com flores artificiais e um lindo terço em Madri-pérola que Nice trouxe da sua última viajem à Itália.  E Paulo? Ela notou sua ausência e sentiu um aperto no peito, algo que já estava acostumada a sentir, uma mistura de medo e desgosto.  Esperou mais alguns instantes e não conseguiu mais disfarçar sua inquietude quando notou também a ausência da jovem na outra mesa. Pediu licença e seguiu em direção ao toalete.
Desceu dois vãos da escadaria, entre portas laterais direcionando o acesso aos lavabos. Uma decoração de extremo bom gosto desde o piso ao teto. Sentiu gelar o estômago ao escutar vozes que vinham de uma das portas. 
A atitude a ser tomada agora, lhe dava a sensação de ter uma bomba prestes a explodir por dentro. Se retornasse ao salão, perderia a oportunidade de descobrir o que imaginava ser, e assim se odiaria por não comprovar suas suspeitas. De outra forma, ficando e invadindo a porta poderia ver diante dos olhos tudo o que mais temia ao longo desses anos de convivência com seu  marido.   Relutando, sentou-se no degrau final da escada de mármore branco, ali permaneceu por alguns minutos. Levantou-se e tirou as sandálias, recordando-se do cinismo de Paulo quando se referiu às sandálias da moça. Olhou ao seu redor para obter a certeza de que ninguém a observava.  Chegou bem próximo à porta de onde as vozes eram cada vez mais fortes, pareciam estar discutindo. Aproximou-se mais ainda e pode reconhecer claramente a voz de Paulo, pensou em abrir bruscamente a porta e surpreende-lo com quem quer que fosse.  A discussão então havia cessado repentinamente. Dora segurou seu impulso por instantes. Resolveu então abrir vagarosamente a porta não se importando com o que aconteceria depois. 
Aos poucos Dora, presenciava tudo o que o seu coração já previa. Uma cena romântica entre Paulo e outra mulher, a mesma que antes se encontrava sentada ao lado deles.  Sentiu-se escandalizada.  Desorientada, fechou a porta sem despertar a atenção do casal, subiu as escadas quase se arrastando, hora de pé, hora apoiando suas mãos no mármore gelado da escada como se não conseguisse carregar o próprio corpo. Gelados também se encontravam sua alma e todo o seu ser.  Aos poucos a música do salão entrava pelos seus ouvidos- Yesterday. Ela adorava essa musica, mesmo assim resolveu caminhar no corredor contrário ao que levava ao saguão do restaurante, e seguiu até o final deste onde havia uma sacada- O restaurante era rodeado por sacadas- vasos com flores em seu peitoril chamaram sua atenção.  Aproximou-se e pode ver a copa das árvores que cercavam a propriedade. Imaginou estar bem distante do solo. Notou uma carreira de formigas, algumas delas carregando pedaços de folhas enormes, incompatíveis com seu tamanho. Sentiu-se como uma delas carregando em si mesma uma grande tristeza. Chorava muito. Não era ciúme o que sentia, não, já o havia vencido. Não se importava em perdê-lo para outra, o mal foi perder-se de si mesma, não se reconhecia mais.- Dora quem é você? Pensava inconsolada.


                                                     III

  Conduziu seu pensamento agora para um rosto meigo e sereno, o da própria filha, que se encontrava de férias em outro local. - E se ela soubesse? Qual seria sua reação? Ele não amava tanto a filha como Dora pensou que amasse.  Ainda na sacada recordou-se das cenas de “Romeu e Julieta” o romance de William Shakespeare e dos seus versos que ela tanto gostava de ler. Alguns os trazia na memória, e os recitava agora sentindo o gosto da própria lágrima na boca. 
“De almas sinceras a união sincera 
Nada há que impeça: amor não é amor
Se quando encontra obstáculos se altera,
Ou se vacila ao mínimo temor.
Amor é um marco eterno, dominante,
Que encara a tempestade com bravura;
É astro que norteia a vela errante,
Cujo valor se ignora, lá na altura.
Amor não teme o tempo, muito embora
Seu alfange não poupe a mocidade;
Amor não se transforma de hora em hora,
Antes se afirma para a eternidade.
Se isso é falso, e que é falso alguém provou,
Eu não sou poeta, e ninguém nunca amou.”

Dora uma romântica autêntica e incurável, encontrou muitas vezes forças para viver esse amor, mesmo que de forma torta, incorporando personagens, minimizando assim seu sofrimento. Quem poderia encontrá-la e salva-la agora, que viesse montado em um cavalo - alado e secasse suas lágrimas? 
Abriu sua bolsa, as mãos tremiam, retirou de dentro dela um envelope que já se encontrava ali, há dias. Só agora teve a coragem de fazê-lo. Pegou umas fotos, dezenas delas, eram de Paulo e sua amante. Constatou a semelhança entre a mulher que se encontrava agora nos braços do marido. O Detetive não economizou serviço! Pensou. Não chorava nesse momento, apenas foi invadida por uma onda de soluços secos e contínuos, tinha os pés e mãos frias embora fosse pleno e alto o verão. Atirou a bolsa para baixo em seguida as fotos de maneira suave, uma a uma, erguendo os braços como no adeus.
No salão todos a aguardavam ansiosos.

                                                        IV

Dora desceu a outra escada que dava acesso ao jardim, belíssimo. Com os pés descalços sentia as pedrinhas brancas arredondadas como se fossem massagens.  O foco verde que vinha das luminárias no solo, coloria com mais intensidade o natural aspecto das folhagens, e também sombreava o seu vestido branco. Atravessou o jardim, e desceu mais um pouco. O terreno era íngreme e perigoso. Andou sem destino durante uns quinze minutos e já escutava os gritos do pessoal que a aguardava no restaurante.  Gritavam por seu nome. Entrava agora por alamedas mais escuras com plantas altas, um solo pedregoso e muito irregular. Não deu importância aos chamados nem ao clarão de lanternas que volta e meia a alcançavam entre a mata, bem mais fechada. Numa descida frenética, soltou os cabelos que a fez perder horas no salão, jogou as presilhas no chão tomando distancia entre elas como se quisesse marcar o lugar por onde passava. Depois vieram os brincos, o colar, anéis, restou apenas a aliança de casamento, não conseguia se desfazer dela por mais que tentasse. Cantarolou yesterday entre lágrimas desesperadas, ignorando as placas que indicavam perigo. 
Dora ofegava. Sentou-se um pouco no chão, tomou fôlego, recolheu pedrinhas e num lance lúcido, escreveu: Perdão filha. Ergueu-se tropeçando como um bêbado desatinado, aprofundando-se mais ainda mata à dentro, seus pés sangravam, seu coração sangrava.  Já não mais escutava as vozes que gritavam por ela apenas um barulho oco de água corrente. Sabia aonde iria chegar se não parasse.  Aproximava-se mais ainda do abismo.  Porém o abismo maior já se instalara dentro dela. O luar tentava vencer a escuridão por entre a mata.  Passo a passo, pedras rolavam, Dora soltava o corpo e se entregava.  Um vento cortante agora. Sua última sensação...

 Um anjo a levou consigo em suas mansas asas brancas.

                                               F I M




por Lourdinha Vilela
Imagem retirada da Internet.






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20 de fevereiro de 2012


-E um silêncio  tão grande,
era a única expressão da minha saudade!



Imagem retirada da Internet

10 de fevereiro de 2012

AQUARELAS


Preciso de tintas
de todas as cores,
pincéis e paleta,
Campos de flores.
Cidades adormecidas
vazias
  nuas
dos traumas das ruas.
Do sol
sobre mares
Sombras
 na lua.
Florestas e estrelas.
Lira de Orfeu.
Gente rezando
Imagem esculpida de Deus.
Que cheguem
 Que entrem
 Atravessem a retina
   Que meu cérebro traduza 
E as minha mãos 
   assim
  reproduzam
com igual beleza,
Reflexos na água
Gôndolas de Veneza.
Rosas amarelas.
 Meus sonhos
expressos
 em Aquarelas.


Lourdinha Vilela


 Imagem retirada da Internet.